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Por quê sistemas falham?

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A anedota diz que dois peixes jovens nadavam no Oceano entre corais quando passam por um peixe sábio e bastante conhecido que lhes diz sorrindo: "– Como vai a água, garotos? Eles acenam e sorriam. Após ele passar eles se perguntam "O que é água?". O ambiente que nos cerca possui certas características, estruturas e propriedades na qual de tão imersos mal percebemos sua presença. Nossa cultura, valores, mas também vieses, preconceitos e visões distorcidas.

Dr. Werner Vogels, CTO AWS

Vivemos imersos em uma teia de complexidades que a redução brutal de conceitos ou a simples polarização sem base em dados que nem sempre é fácil entender a trajetória e mesmo o estado interno dos sistemas. Como já citei na postagem O Princípio Anna Kariênina vivemos sempre em um tenso equilíbrio de otimizar nossos recursos e a falha de sistemas é sempre uma possibilidade. Como nos proteger? Estudar outros projetos. Observar seus logs, criar alarmes, verificar com data points a característica de seu sistema. Aqueles que não leem seus logs estão fadados a reproduzir os bugs do passado. Há um livro que pretendo abordar em algum momento que foi um estudo de caso muito interessante de Eden Medina, “Cybernetic Revolutionaries: Technology and Politics in Allende’s Chile” do MIT Books sobre um ousado experimento da união de estudos de cibernética e a política socialista de Allende no Chile. O projeto envolvia uma sala a la Star Trek em que os governantes teriam acesso a informações em tempo real de todo o país e poderiam otimizar e governar baseado em dados.

Sala de controle do Projeto Synco/Cybersyn
Um ousado projeto para um país sulamericano em que mesmo computadores eram escassos

O Projeto Synco/Cybersyn contou com a supervisão de Stafford Beer convocado pelo engenheiro Fernando Flores. E isto na década de 1970! O experimento revela, de forma direta e explicita o que rege qualquer sistema: dinâmicas de poder,topologias de comunicação e como artefatos tecnológicos são criados e embutidos com as intencionalidades e o de seus criadores (o termo cibernética por si só foi definido por seu criador como “o estudo científico do controle e da comunicação no animal e na máquina” – ênfase minha).

Human-technology relations are a subtle dance in which technological objects push and pull with varying degrees of insistence while human subjects navigate with more and less motivation, creativity, and skill.

Technologies are designed, implemented, and used through webs of choices. Some of these choices are explicit and reflect a clear intention for the technology to affect human action in some specific way. Other choices are implicit and may not ever enter the conscious minds of designers, distributors, or end users. Each choice—explicit or implicit—reflects and affects value orientations, sociostructural arrangements, and social dynamics. […]

Technological objects can exert substantial force, but only humans can and must be held to account. I hinge the assumption of object-subject asymmetry on a distinction between efficacy and agency. Efficacy refers to the capacity to effect change. Agency refers to the capacity to inflict will. This distinction comes from Ernst Schraube’s technology as materialized action approach, which claims that although technology can be highly efficacious, only humans can be agentic. How Artifcacts Afford

Faço esta introdução para convidá-los um estudo de caso de um sistema, que perdurou por décadas em nosso país e seus próprios arquitetos o acabaram. Não é necessariamente de tecnologia mas podemos aprender de todas as áreas e certamente envolve tecnologias em mais variados graus como se poderá inclusive ver ao final. Se a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa – estamos neste momento protagonizando uma das farsas mais obtusas e néscias mas com muitos pontos de contato. Para entender por que sistemas falham, cito agora um trecho de livro:


O objetivo desta obra é contar por que e como Geisel e Golbery, dois militares que estiveram na origem da conspiração de 1964 e no centro do primeiro governo constituído após sua vitória, retornaram ao poder dez anos depois, com o propósito de desmontar a ditadura. Geisel era um moralista, defensor convicto de um Executivo forte, adversário do sufrágio universal como forma de escolha de governantes e crítico acerbo do Parlamento como instituição eficaz. Golbery, que em 1956 — em pleno governo constitucional — pedia a criação de um Serviço Nacional de Informações, fundou-o em 1964 e dirigiu-o até 1967. Conviveu com ele a partir de 1974, ajudou a transformar o seu chefe, general João Baptista Figueiredo, em presidente da República e, em 1981, chamou sua criatura de “monstro”. Deixou o governo amaldiçoando o que se denominava Comunidade de Informações: “Vocês pensam que vão controlar o país cometendo crimes e encobrindo seus autores, mas estão muito enganados. Vão ser postos daqui para fora, com um pé na bunda”, disse Golbery ao general Octavio Aguiar de Medeiros, chefe do SNI, no dia em que saiu do palácio do Planalto, em agosto de 1981.

“Foram pessoas tão diversas que só a característica comum da curiosidade pode tê-los aproximado. Geisel, o Sacerdote, foi um crente na evolução dos seres, das sociedades e da vida em geral, uma pessoa reservada e de trato aparentemente difícil. Defensor quase religioso da instituição militar, trazia da caserna o sentido de ordem e uma visão prática da atividade pública capaz de levá-lo, com frequência, ao anti-intelectualismo. Golbery, o Feiticeiro, foi um curioso. Cético e irônico, parecia gostar de problemas muito mais para lidar com charadas do que para ostentar soluções. Geisel acreditava em muitas coisas, inclusive em si próprio. Golbery não acreditava em quase nada, muito menos em si mesmo. Sua frase predileta, tomada a Ivan Karamazov, revelava esse ceticismo que ele chamava de “rebeldia”: “Deus morreu, tudo é permitido”.

O Sacerdote e o Feiticeiro acreditavam no Brasil e nele mandaram como poucas pessoas o fizeram. Suas trajetórias ensinam como é fácil chegar a uma ditadura e como é difícil sair dela.

Até o início dos anos 1990, quando os pesquisadores do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, o CPDoc, começaram a publicar os depoimentos da memória militar do período, a bibliografia da ditadura esteve espremida entre dois absolutos. Num estivera a retórica militar de um regime que caducara. No outro, um revisionismo que, por falta de fontes ou vontade de buscá-las, menosprezou a voz calada. Pode-se estimar que entre 1979 e 2000, para cada dez livros de memórias e biografias de oposicionistas, publicou-se apenas um relacionado com as lembranças ou a vida dos hierarcas da velha ordem. A voz dos militares foi recuperada pela trilogia coordenada pelos professores Gláucio Ary Dillon Soares, Maria Celina d’Araujo e Celso Castro. Os dois últimos enriqueceram essa bibliografia com o depoimento de Ernesto Geisel.

Dessa série de entrevistas, publicada depois de sua morte, Geisel emerge como o único general a defender a tortura: “Acho que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões”. Logo ele, que acabou com ela. Fez essa defesa por duas razões. Primeiro, porque realmente considerava a tortura necessária. Segundo, porque tinha tamanha vergonha de ser apanhado mentindo que por mais de cinquenta anos deve ter sido uma das poucas pessoas que jogavam pôquer sem jamais recorrer ao blefe: “Eu nunca blefei. É um jogo que você joga com as cartas, com as fichas e com o temperamento dos parceiros. Aí é que entra o blefe. Para mim seria uma decepção tão grande ser apanhado blefando que nunca blefei”.

É vasta a literatura sobre a entrada dos militares no processo político dos países subdesenvolvidos. É bem menor, infelizmente, a bibliografia da saída. No poder, os generais raramente contam as maquinações políticas de que participam. Fora dele, raramente são procurados para falar do passado. Essa circunstância diminui o conhecimento dos motivos e dos mecanismos pelos quais se processam as retiradas, exceto quando elas são consequência de desastres militares, como sucedeu na Argentina depois da Guerra das Malvinas, em 1982, e na Grécia dos coronéis depois da aventura cipriota, em 1974.”

O mais caudaloso dos generais que tomaram o poder no século XX, Charles de Gaulle, escreveu cinco volumes de memórias e neles foi de suprema avareza na narrativa do metabolismo da política militar. Ao longo de todos os seus livros, fala com frequência da grandeza da França, de seu Exército e “da encarnação dos dois: De Gaulle. Quando se trata de procurar os mecanismos políticos a que recorreu para desmontar a associação dos militares com a extrema direita, a repressão política e o colonialismo na Argélia, tudo somado não junta dez páginas.

“É possível arriscar uma explicação para esse fenômeno. Os militares procuram preservar a própria mística segundo a qual, em quase todos os idiomas, as Forças Armadas, por suas virtudes, colocam-se acima dos partidos e da política dos civis. “É uma questão de pudor”, diria Geisel. Por isso, mesmo quando relembrava os dias de seu governo, raramente se referia às razões que o levaram a pôr o general Fernando Bethlem no lugar de Sylvio Frota.”

Se há uma grande diferença entre a política dos civis e a dos militares, ela está no fato de que esta envolve uma corporação burocrática fechada que precisa acima de tudo preservar alguma forma de coesão. Quando as Forças Armadas estão metidas na política, a remoção de um coronel de lealdade duvidosa é decidida geralmente de maneira semelhante à transferência de um diretor de hospital municipal que, depois de ter se ligado à oposição, perdeu a confiança do prefeito. Contudo, se a sanção ao médico é muitas vezes apresentada orgulhosamente como vingança, a remoção do coronel é sempre apresentada como puro produto da rotina. Prefeitos e médicos podem brigar abertamente. Ambos podem mudar de partido, de hospital e, até mesmo, deixar a política ou a medicina. Os militares não podem fazer isso com a mesma facilidade, pois um capitão de fragata não pode trocar de Marinha nem um major de cavalaria, de Exército. Permanecendo na corporação, convivem com a mesma geração de colegas, respeitando praticamente a mesma hierarquia ao longo de toda a vida. No mundo civil, o primeiro colocado numa turma de engenharia perde-se na lembrança dos tempos. Já nos quartéis, o primeiro colocado na Academia Militar “ é, pela eternidade, uma espécie de campeão olímpico. Vivem como passageiros de um imenso transatlântico no qual se fazem amizades e antipatias sob o compromisso de manter o barco à tona, a fé no destino e, se possível, o conforto a bordo. Septuagenários e poderosos, jamais esquecem um capitão cuja mulher saía em aventuras vespertinas ou um tenente-coronel que colava na Escola de Estado-Maior. Jamais se esquecem, por exemplo, dos apelidos da juventude, ganhos no tempo das escolas militares. Para um aspirante dos anos 1930, o Brasil foi presidido de 1964 a 1985 por Tamanco, Português, Milito, Alemão e Figa.

O silêncio dos generais foi compensado pela utilização maciça de conceitos teóricos. Com isso, frequentemente misturaram-se ideias brilhantes e preconceitos, dando-se força de dogma a algumas racionalizações que, no máximo, seriam bons instrumentos de especulação. Para explicar a brutalização da política, recorreu-se demais ao que se chama de Doutrina de Segurança Nacional ou, na sua denominação crítica, Ideologia da Segurança Nacional. Trata-se do sistema através do qual se teria processado, calculadamente, a articulação da ditadura. Nesse arcabouço doutrinário, formulado e desenvolvido na Escola Superior de Guerra, seria possível encontrar, arrumadas, as ideias do regime militar. Nessa racionalização juntaram-se tanto defensores como adversários do regime.

A deficiência central da Doutrina de Segurança Nacional, tanto para quem combateu a ditadura como para quem a adorou, está no fato de que ela nada teve de doutrina, muito menos de ideologia. A expressão “segurança nacional” embutiu um preconceito, talvez uma ideia. Como uma personagem do escritor V. S. Naipaul, “ela tem muitas opiniões, mas não chegam a formar um ponto de vista”. Nos seus 21 anos de vida, o regime militar operou nas questões de segurança do Estado por meio de elementares práticas policiais. Quando essas práticas foram colocadas em português mais complicado, isso foi feito para construir racionalizações e justificativas. Primeiro se deu à tortura a condição de política de Estado. Depois é que se criou um “Sistema de Segurança Interna”, que nem sistema chegou a ser.

Exagerar a importância do que seria uma astuciosa ideologia específica da “Revolução Redentora de 31 de Março de 1964” faz com que se veja racionalidade onde não houve. Tome-se o caso da interferência de militares ligados ao Serviço Nacional de Informações no projeto de desmatamento da floresta que deveria ser coberta em 1980 pelo lago da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará. Se a operação tivesse dado certo, caberia como uma luva a explicação segundo a qual negócio tão lucrativo foi entregue a militares da reserva porque isso fazia parte do projeto de fortalecimento do poder do Estado na Amazônia. Deu errado e, em 1985, custara ao país cerca de 30 milhões de dólares. Tudo se resumia a uma negociata envolvendo meia dúzia de espertalhões ligados ao SNI. Tucuruí seria uma exceção? Tome-se então o caso da indústria de material bélico. Seria um ingrediente de fortalecimento do poder nacional. Suas atividades clandestinas, operações negras e a desenvoltura com que se traficaram influências prenunciavam o colapso de “uma fraude. Finalmente, gastaram-se milhões de dólares no projeto secreto de construção de um artefato nuclear. Havia uma iniciativa para o enriquecimento de urânio na Marinha e outra na Aeronáutica. Havia também o projeto de abertura de um buraco de trezentos metros de profundidade por um metro e meio de diâmetro, na serra do Cachimbo, na Amazônia. Seria a área de teste do artefato. A equipe do buraco foi a única que chegou ao final.

A Doutrina de Segurança Nacional serviu também de conduto para racionalizar tudo o que aconteceu de ruim na ditadura. Quando essa mesma ditadura começou a se retrair, jogou-se fora a demonologia militar e entronizou-se a beatificação das massas. Cada recuo do regime foi entendido como consequência de uma pressão das forças libertárias da sociedade. A fé em que “o povo unido jamais será vencido” é insuficiente para explicar mudanças ocorridas antes que aparecessem, como tais, as pressões. É este, por exemplo, o caso da suspensão da censura à imprensa, processo cautelosamente iniciado em 1974 e concluído dois anos depois.

Atribuir o fim da censura a qualquer tipo de pressão direta sobre o governo seria um exagero, pois se a censura tem uma utilidade esta é a de colaborar decisivamente para a desmobilização política da sociedade. Atribuí-lo a um movimento dos proprietários de jornais, revistas e emissoras, um despropósito. Devê-lo a uma resistência maciça dos jornalistas, cortesia impossível. O fim da censura só se explica através do complexo mecanismo de uma decisão imperial do presidente Ernesto Geisel: “Recebi no palácio todos os donos de órgãos de comunicação. Nenhum me pediu o fim da censura”. Quem pedisse perderia seu tempo.

Para quem quiser cortar caminho na busca do motivo por que Geisel e Golbery desmontaram a ditadura, a resposta é simples: porque o regime militar, outorgando-se o monopólio da ordem, era uma grande bagunça.

Como ela tomou conta do país e como a desmancharam é uma história mais comprida. Começa na noite de 30 de março de 1964, quando a democracia brasileira tomou o caminho da breca.

– Trecho (talvez maior do que a lei dos direitos autorais permita) de “A Ditadura Envergonhada”, de Elio Gaspari, Ed. Intrínseca, páginas 38-43, da introdução.


Brasil, 2021: eis que a história se repete.