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"Ruined by Design", um livro mais do que necessário

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Este é um texto que escrevi e publiquei no Medium no excelente UX Collective. Estou passando algumas publicações do Medium para meu próprio blog, para não limitar à plataforma, que cada vez mais tenho me afastado.

Estamos ferrados. Na verdade, estamos tão ferrados que pode já ser tarde demais para este livro.

É com essas palavras que Mike Monteiro abre seu mais recente livro “Ruined by Design”, um dos mais importantes livros que li esse ano, e talvez um dos mais importantes para minha carreira. É uma leitura divertida — o autor faz observações hilárias, honestas, exibindo um olhar ferino mas, mais do que tudo — engajado. Engajado em fazer um mundo melhor para todos. Por definição este é um livro de ética — Espere, espere, antes de abandonar esse artigo, segure seu dedo ou clique. Dê uma chance à ética.

Eu mesmo tive reservas quanto a ler esse livro. Ele foi indicado e elogiado por tantas pessoas que perdi a conta. O UX Trends nomeou-o o livro de 2019, por exemplo. E ainda assim, achava que simplesmente não era para mim. Afinal, não sou designer. Ou melhor, meu trabalho no dia-a-dia não passa por conjurar pixels do Éter da Adobe ou Figma, em avaliar o quanto de Espaço Negativo vai afetar as dimensões de diferentes camadas da realidade ou que Emoções vou despertar no público exposto à minha paleta de cores. Nem um pouco. Sou um desenvolvedor. Trabalho em um veículo digital de mídia e meu trabalho envolve coisas que vão desde mudar a cor de um link, fazer manutenção em servidores, validar inputs dos usuários com JavaScript e APIs externas até otimizar com web workers o data fetching para diminuir a carga na Main Thread e ganharmos em performance (essa última juro que não inventei, realmente é algo que trabalho, mas citei só para impressionar). Mas no sentido amplo do Mike Monteiro, sim, eu sou um designer.

“Se você afeta como um produto funciona em qualquer nível — você está fazendo design”

Mike Monteiro

O objetivo do livro então é demonstrar como fazer design é um ato político. E, com exemplos reais cada vez mais presentes nas notícias. Nossos dados sendo expostos, vendidos, revendidos. Discursos de ódio sendo amplificados, sem passar por regras de conduta ou sem consequências, já que eles aumentam o engajamento, em outras palavras, “faz bem aos negócios”. Empresas se movendo rápido e quebrando coisas como saúde mental e democracias (“Oh, hi Mark!”). Plataformas que carregam nelas entranhadas em si uma política de exploração. Serviços de imigração usando bancos de dados e empresas de tecnologia para aumentar a eficiência de suas práticas destrutivas (O Vale do Silício tem uma certa história, como por exemplo, quando a IBM vendeu aos nazistas a tecnologia para fazer a gestão otimizada de como distribuir e assassinar pessoas nos campos de concentração). Podemos continuar aqui os exemplos ad nauseum (afinal náusea é a reação que melhor descreve o que você pode estar sentindo), mas acho que já entenderam do que estou falando.

E assim como “o software está devorando tudo”, cada vez mais designers (seja trabalhando no lado dos pixels, seja trabalhando no lado dos algoritmos), são responsáveis por trazer essas coisas ao mundo. “Nós estamos para nos tornar a última linha de defesa contra monstros”. No livro, Monteiro explora brilhantemente e cheio de anedotas, exemplos e muitos dados, diversos momentos onde ética e design colidem, e o que precisamos fazer para assumir a responsabilidade por um mundo melhor. E se você não acha que esse assunto é importante, bem, vou citar um dos mais surrados slogans de movimentos de transformação: “Se você não faz parte da solução, você faz parte do problema”. Ou você é o produto vendido. Bem ignore a última parte, todos nós somos os produtos vendidos. O que podemos fazer é escolher fazer parte da solução ou não. E este livro é um excelente guia.

Em parte do livro, Monteiro propõe um código de ética para designers. E o melhor, ele é open source. Fui ao Github verificar e com surpresa, não havia ainda a tradução para o Português do Brasil. Conversei com a Victoria Bevilacqua, designer que a sete anos trabalha com branding, e juntos traduzimos, este código de ética. Tentamos, explorando muito do livro, tornar as declarações do texto o mais neutras o possível nos gêneros — não conseguimos em 100% dos casos, mas é um detalhe que acho importante destacar já que no original onde se lê “A designer…”, não queríamos escrever “Um designer…” e adotamos “Designers…“. Buscamos tornar a tradução um pouco mais inclusiva by design (desculpe, eu não poderia deixar essa passar).

A tradução em Português do Brasil pode ser conferida no Github. E o próprio autor, antes deste livro, já havia publicado uma versão no Medium deste código de ética, (em inglês, é claro). A necessidade de iniciativas como esta já foram discutidas antes, e deve sempre estar em pauta.

O Código de Ética para Designers

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Designers são antes de tudo e principalmente seres humanos.

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Antes de ser designer, você é um ser humano. Como todo outro ser humano no planeta, você faz parte do contrato social. Ao escolher ser designer, você escolhe impactar as pessoas que entram em contato com seu trabalho, e com as suas ações você pode ajudá-las ou prejudicá-las. O efeito daquilo que você coloca no mundo deve sempre ser um ponto focal do seu trabalho.

Cada ser humano neste planeta é obrigado a fazer seu melhor e deixar este lugar em melhor estado do que quando chegou aqui, e designers não podem se isentar disso.

Quando você faz um trabalho que depende de desigualdade de salário ou distinções de classe para ser bem sucedido, você está falhando em seu trabalho como cidadão e, portanto, como designer.

Designers são responsáveis pelo trabalho que colocam no mundo.

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Design é uma disciplina de ação. Você é responsável pelo que você cria. Suas criações têm o seu nome nelas. Apesar de ser impossível prever com exatidão como qualquer um de seus trabalhos vai ser usado, não deveria ser uma surpresa quando um trabalho feito para ferir alguém alcança a sua meta. Não podemos nos surpreender quando uma arma que projetamos mata alguém. Não podemos nos surpreender quando um banco de dados para catalogar imigrantes faz com que esses imigrantes sejam deportados. Quando produzimos de forma ignorante um trabalho que prejudica outros por não considerarmos suas ramificações, somos duplamente culpados.

O trabalho que você traz ao mundo é seu legado. Viverá mais que você e falará por você.

Designers valorizam impacto sobre a forma.

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Nós precisamos temer as consequências de nosso trabalho mais do que amar a sagacidade das nossas ideias.

O design não existe em um vácuo. A sociedade é o maior sistema que podemos impactar, e tudo o que você faz é uma parte desse sistema, para bem ou para mal. Sendo assim, devemos julgar o valor de nosso trabalho baseado em seu impacto, ao invés de julgá-lo por sua estética. Um objeto que seja projetado para ferir pessoas não pode ser considerado “um bom design”, não importa o quão esteticamente agradável seja, pois seu design é feito para ferir. Nada que um sistema totalitário projete tem um bom design pois foi feito por um regime totalitário.

Designers devem às pessoas que os contrataram não apenas seu trabalho, mas seu conselho.

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Quando você é contratado para fazer o design de algo, você foi contratado por sua área de conhecimento. Seu trabalho não é apenas executar este trabalho, mas também de avaliar o seu impacto. Seu trabalho é comunicar as implicações do projeto para seu cliente ou empregador. E caso este impacto seja negativo, é seu trabalho transmitir a seu cliente, juntamente com formas de eliminar (se possível) esse impacto negativo. Se é impossível eliminá-lo, é seu trabalho evitar que o projeto veja luz do dia. Em outras palavras, você não é contratado apenas para cavar um buraco, mas para considerar os impactos econômicos, sociológicos e ecológicos daquele buraco. Se o projeto falha nestes critérios, é seu trabalho destruir as pás.

Designers usam a sua área de conhecimento à serviço de outros sem serem serviçais. Dizer não é uma habilidade de design. Perguntar porquê é uma habilidade de design. Revirar os olhos não é. Perguntar “por que estamos fazendo algo” é uma pergunta infinitamente melhor de que “como o podemos fazer”.

Designers valorizam críticas.

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Nenhum código de ética deve proteger seu trabalho de críticas, sejam de clientes, do público ou de outros designers. Ao invés disso, devemos encorajá-las para criarmos trabalhos melhores no futuro. Se seu trabalho é tão frágil que não suporta a qualquer crítica, ele não deveria existir. A hora de colocar um projeto à prova é no momento em que ele sai para o mundo. Esteja aberto às críticas vindas de qualquer lugar.

O papel da crítica, quando dada da forma certa, é de avaliar e melhorar o trabalho. A crítica é um presente. Ela torna o trabalho melhor. Ela mantém trabalhos ruins longe da luz do dia. Críticas devem ser pedidas e bem-vindas a cada passo do processo de design. Você não pode corrigir a receita de um bolo uma vez que foi ao forno. Mas você pode melhorar as chances de que seu projeto seja bem sucedido ao pedir feedback mais cedo e em maior quantidade. É sua responsabilidade solicitar esse feedback.

Designers devem conhecer sua audiência.

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O design é uma solução intencional para problemas dentro de uma conjunto de limitações. Para saber se está resolvendo esses problemas de forma adequada, você precisa se encontrar com as pessoas que os vivem. E se você faz parte de um time, seu time deve ter como meta refletir estas pessoas. Quanto mais um time reflete a audiência para a qual se está trabalhando, mais profundamente ele conseguirá resolver esses problemas. Dessa forma, o time poderá investigar a situação de diferentes pontos de vista, usando o repertório de diferentes perfis, diferentes conjuntos de necessidades e experiências. Um time com um único ponto de vista nunca irá entender as limitações que precisam ser consideradas no projeto da mesma forma que um time com múltiplos pontos de vista o faria.

E o que dizer sobre empatia? Empatia é uma palavra bonita para exclusão. Se você quer saber como mulheres vão usar algo que está sendo projetado, tenha uma mulher no time de design.

Designers não acreditam em casos isolados.

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Quando você decide qual grupo de pessoas é seu público final, você está implicitamente declarando qual grupo não é. Por anos nos referimos às pessoas que não eram essenciais ao sucesso dos projetos como “casos isolados”. Nós estávamos marginalizando essas pessoas. E estávamos tomando uma decisão de dizer que existem pessoas no mundo com problemas que não valem a pena ser resolvidos.

O Facebook declara ter dois bilhões de usuários. Um por cento de dois bilhões de pessoas, porcentagem que seria considerada como um “caso isolado”, equivale a vinte milhões de pessoas. Essas são as pessoas nas margens.

“Quando você chama algo de caso isolado, você na verdade está apenas definindo os limites daquilo que você se importa.”

Eric Meyer

Essas são as pessoas trans que ficaram isoladas em projetos que exigem “nomes reais”. Essas são as mães solteiras que ficaram isoladas nos “ambos os pais devem assinar”. Esses são os imigrantes idosos que apareceram para votar e não conseguiram urnas com interfaces em suas línguas maternas.

Esses não são casos isolados. São seres humanos, e nós devemos a eles nosso melhor trabalho.

Designers são parte de uma comunidade profissional.

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Você faz parte de uma comunidade profissional, e a forma como você faz o seu trabalho e se porta profissionalmente afeta a todos nessa comunidade. Da mesma forma como marés altas afetam todos os barcos, cagar na praia afeta todos os banhistas. Se você for desonesto com um cliente ou empregador, o designer depois de você pagará o preço por isso. Se você trabalha de graça, o designer depois de você terá isso como expectativa do cliente. Se você não oferecer resistência a fazer trabalhos ruins, o designer depois de você terá o dobro do trabalho para fazer isso.

Enquanto um designer tem uma obrigação ética de ganhar seu sustento fazendo o melhor das suas habilidades e oportunidades, fazer isso às custas de outros na mesma área de atuação é um desserviço a todos nós. Nunca puxe o tapete outro designer para alcanças as suas próprias metas. Isso inclui “melhorias públicas” do trabalho de outra pessoa, trabalhos não remunerados e plágios.

Um designer busca fortalecer a comunidade, não dividi-la.

Designers valorizam um campo diverso e competitivo.

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Ao longo de suas carreiras inteiras, designers buscam aprender. Isso significa confrontar o que não sabem. Isso significa ouvir as experiências de outras pessoas. Isso significa valorizar e encorajar pessoas de diversos perfis e culturas. Isso significa abrir espaço na mesa para pessoas que a sociedade tem historicamente deixado de fora. Nós devemos abrir espaço para que vozes tradicionalmente marginalizadas sejam ouvidas na profissão. A diversidade leva a melhores resultados e melhores soluções. A diversidade gera um design melhor.

Designers mantém seus egos sob controle, sabem quando calar a boca e ouvir, são cientes de seus próprios vieses (e valorizam quando alguém os chama a atenção por um deles), e lutam para abrir espaço para aqueles que foram silenciados.

Designers investem em auto reflexão.

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Ninguém acorda um dia fazendo design para jogar sua ética pela janela. Isso acontece lentamente, um passo em falso por vez. É uma sequência de pequenas decisões que podem parecer tranquilas na hora, até que eventualmente você nota que está fazendo o design da UI de uma loja de armamentos.

Invista em tempo para auto reflexão de tempos em tempos. Avalie as decisões que tomou recentemente. Você está se mantendo verdadeiro a quem você é? Ou você está lentamente aumentando seus limites éticos em alguns metros a cada vez que recebe um aumento ou promoção?

Você saiu do rumo? Corrija-o. Seu local de trabalho é um buraco dos infernos antiético? Consiga outro.

Seu trabalho é uma escolha. Por favor, faça-a de forma correta.


Se me pedissem hoje uma dica para ler um livro, e apenas um livro, para melhorar sua carreira, eu indicaria sem pensar, “Ruined by Design”. Um daqueles livros que te faz crescer não apenas como profissional, mas como ser humano.

Nota: Especialistas em ética ou moral podem apontar que não “existem” códigos de ética — apenas códigos de conduta ou moral (ainda que médicos, advogados e associações profissionais de todo o mundo adotem os seus, exatamente os chamando de “Código de ética”, sendo documentos formais e em muitos casos descritos em leis e assembleias). Concordo com a visão de um editor da Wikipédia que fazer estas distinções são nocivas, pois são gratuitas e insustentáveis e acabam se tornando apenas gatekeeping, afastando as pessoas de um debate sério por definições.