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O que aprendi ao co-fundar uma startup da “economia colaborativa” e por que saí dela

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Este é um texto que escrevi em 2015 e publiquei no Medium. Muito tempo se passou, meus pensamentos, opiniões evoluiram em diferentes direções aqui e ali, nem todos os links funcionam mais, mas arquivo o texto exatamente como escrevi na época.

Essa é a história da minha participação pessoal no momento da fundação de uma startup da "economia colaborativa", minhas principais críticas aos modelos e ao próprio conceito, uma percepção do mercado e o que me levou a abandonar tudo após uma desilusão ao propósito e missão que eu estava proposto a realizar. Senti-me compelido a compartilhar essa parte de minha trajetória após a repercussão do meu texto anterior, "O Uber está para a economia colaborativa assim como orgia está para a virgindade".

Para mim, a santíssima trindade das distopias é composta de “Admirável Mundo Novo”, “1984” e “Laranja Mecânica”. Estaríamos caminhando para uma distopia? E quem desses autores estava mais correto?

Vai ser como Orwell escreveu, um mundo dominado pela vigilância repressiva e pelo estado de segurança que usaria formas cruas e violentas de controle? Ou como em Burgess, com violência desenfreada de jovens e programas de manipulação dos sentimentos e da personalidade através de alterações da química cerebral dos indivíduos? Ou talvez como Huxley anteviu, um futuro em que abraçaríamos nossa opressão embalados pelo entretenimento e pelo espetáculo, cativados pela tecnologia e seduzidos pelo consumismo desenfreado?

Talvez cheguemos no futuro sombrio de Burgess, em que vamos começar a manipular diretamente a química de nossa natureza humana. Para mim, nosso mundo está longe de ser uma distopia. Mas, de uma forma ou de outra, Orwell e Huxley estavam certos sobre os nossos dias: Tudo observado por máquinas de adorável graça. Algumas startups da chamada “economia colaborativa” fazem manipulação da linguagem como a “Novolíngua” de “1984” e as pessoas abraçam sua opressão embalados pela comodidade que a tecnologia oferece. Antes de entrar em detalhes, um pouco de minha história…

A startup Blumpa teve seu momento de fundação durante o Programa de Germinação, na primavera de 2013. O programa, chamado na época de Bootcamp, é realizado pela Germinadora, criada pelo Juan Bernabó com a função de auxiliar empreendedores a criar startups. Se desenrolando em 12 semanas, o objetivo ao final do período é estar o mais próximo possível do product-market fit, um conceito criado por Andreesen e amplamente utilizado por startups. O artigo original explica bem melhor mas, resumidamente, na prática significa ter encontrado um produto que realmente é necessário, faz sentido para uma parcela dos clientes e o mais importante de tudo, que estão dispostos a pagar por isso. Ao final das 12 semanas do programa, a Blumpa não havia apenas faturado — coisa que fez desde o primeiro dia — mas estava crescendo rapidamente e ocupando cada vez mais nosso tempo.

A ideia do Eduardo del Giglio era criar uma espécie de Task Rabbit, mas focado em limpeza. Por um tempo, o próprio Task Rabbit voltou sua atenção para limpeza, mas na época ele ainda era “desfocado” em todo tipo de serviço. Logo depois descobriu-se que existiam startups americanas, como a Handy e a HomeJoy, mas que eram completas desconhecidas nas primeiras semanas. A gigante Rocket Internet, em fevereiro de 2014, fundou uma concorrente ao Blumpa na Alemanha, chamada Helpling, que mais tarde, no mesmo ano, iniciou sua atividade aqui no Brasil.

Entrei para ajudar na construção do site. Não era algo que, à primeira vista, me animava muito a fazer. Na verdade, trabalhar com isso meio que me deixava desconfortável. Minha mãe sempre foi profissional de limpeza — até hoje trabalha com isso — e por isso eu sabia muito bem as dificuldades e problemas que existem na relação entre contratantes e clientes. Por ter sempre visto isso muito de perto, eu realmente só queria auxiliar nas operações por um tempo, dado o meu status de co-fundador. O meu plano para o início de 2014 era apenas fazer o mestrado. Acabei passando o ano trabalhando de segunda a segunda na construção da startup passando por investimentos e as operações do dia a dia.

Eis uma explicação de economia compartilhada feita pelo UOL Tab:

Sim, a gentileza entre estranhos pode virar um negócio, e vice-versa. E isso pode ser bom. Mas o grande atrativo, além da vantagem financeira, está em viabilizar o acesso para o tamanho da necessidade. Porque a posse do obbjeto ou do espaço não é mais um fim em si. Há uma materialização de uma vida on demand, como já é na vida digital. A experiência é o foco do consumo. É possível ter uma Ferrari por alguns dias (sem pagar IPVA), passar as férias num barco (sem despesas no píer) e trocar de biccicleta a cada fim de semana (sem ter de guardá-la na sala de casa). Nesse tipo de negociação - que talvez você já use, mesmo sem saber -, o papel do fornecedor também é execido pelo indivíduo. Gente como você, você pode lucrar com aquele quarto vago via Airbnb, com a câmera de vídeo que usa apenas no Natal ou com o carro que sai da garagem poucos dias no mês.

Basicamente é aproveitar ativos que as pessoas possuem — carros, casas e até mesmo tempo — e fazer “trocas” com outras pessoas. Em alguns casos, as trocas são literais: eu te empresto minha casa e você me empresta a sua. Em outros, a troca é monetária: eu trabalho pra você por 5 horas e você me paga R$ 21,90 a hora. O AirBnb é um exemplo de economia compartilhada que funciona muito bem: dá uma função econômica e social para quartos, apartamentos ouespaços que de outra forma ficariam desocupados. O preço nem sempre é o mais acessível mas, em qualquer mercado, o preço que se paga deve ser um acordo mútuo do quanto se considera que algo vale. Na economia compartilhada, coisas e espaços já existentes ganham novo significado e estimulam a economia.

Algumas empresas se apropriam desse conceito para fins de marketing: seja colocando novos carros na rua, como o Uber ou a exploração de serviços sem vínculos financeiros na chamada “gig economy”.

No início estava fascinado por fazer parte desse mundo. As profissionais de limpeza, eu racionalizava, já prestam esse serviço. Com o uso da tecnologia e marketing digital poderíamos oferecer uma quantidade maior de serviços para cada uma delas, aumentar as rendas e criar lares mais felizes: tanto para as profissionais, melhores pagas, com regras mais claras de período de trabalho, quanto para os contratantes, recebendo um serviço de qualidade, com simplicidade e praticidade.

Com o tempo fui perdendo minhas ilusões.

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Por um tempo, tenho de reconhecer, “vivemos o sonho”. Realmente aumentamos a renda de algumas pessoas, tivemos um impacto positivo, mas existem contradições e problemas no centro do modelo que o tornam insustentável e que me levaram, nos últimos dias de 2014, a pedir minha saída da startup.

Confesso que sempre senti que as descrições geracionais lembram signos do Zodíaco: definições vagas, com leitura fria, baseado na data de seu nascimento e que descreveriam sua personalidade, seu comportamento profissional, em relacionamentos e, em sua última instância, o futuro.

Uma das descrições da geração Y é que ela é eternamente insatisfeita e fica trocando de trabalho, sem respeito pela autoridade. Por isso, algumas pessoas apostam que a chamada “gig economy”, ou “economia de bicos” é um caminho viável (nota: o link é de um artigo do fundador do Fiverr, uma plataforma que faz parte da onda de marketplaces da gig economy): fazendo pequenos trabalhos aqui e ali, sem estar formalmente atrelado a alguma empresa. Mas o conceito já vem ganhando pauta e sendo debatido nos Estados Unidos por seus efeitos não tão positivos para a grande maioria dos trabalhadores.

Eu não acho que o desejo de mudar de trabalho é algo que surgiu hoje. A inquietação sempre fez parte do espírito humano (vide qualquer história). Antes, entretanto, os custos sociais (de reputação) e os mecanismos das empresas não permitiam essa mobilidade entre empregos. Se hoje as pessoas ficam trocando de posições, é porque as empresas permitiram isso e, principalmente, ficaram tentando atrair novos talentos. Não acho que isso seja uma característica intrínseca da “geração Y” ou de qualquer outra. Vivemos um momento histórico que não apenas permite, mas cataliza um desejo que sempre foi presente. Em minha visão, quase tudo na vida são trade-offs. Um dos caminhos não é melhor nem pior que o outro, apenas possui efeitos diferentes em áreas diferentes e compete a cada um avaliar que tipo de efeito espera ter e quais quer evitar.

A Fast Company publicou um artigo no início do ano chamado “The Gig Economy won’t last because it’s being sued to death”, em que mostra que já existe um movimento cada vez maior de processos para diversas startups. Isso é bem recente, mas os resultados abrirão precedentes para o framework legal em que irão se enquadrar essas empresas, que até hoje se encontram, no mínimo, em uma zona cinza. Como é citado no artigo, as proteções existem pois os trabalhadores precisam de um mínimo de amparo, para não serem explorados:

As proteções que foram colocadas para os trabalhadores evoluíram literalmente ao longo do último século e não foram acidentais — traduzido de: “The protections that have been put in place for workers have literally evolved over a century and weren’t accidental.”

Como Sarah Jaffe escreveu no Guardian, as startups da gig economy estão isolando os trabalhadores e os fazendo ganhar menos. Algumas com o discurso de que diminuem o valor pago por serviço mas aumentam em quantidade de serviço gerado. Isso partindo do pressuposto de que cada trabalhador é um homo economicus que otimizará seu tempo a fim de acumular um maior número de “bicos” por dia / semana / mês. Após ter convivido toda a minha vida com profissionais de limpeza (e centenas em meu trabalho), constatei que não é assim que as pessoas se comportam no mundo real.

E não podemos esquecer que a maioria dessas empresas encontra demanda em pessoas cada vez mais conectadas à todo instante e que demandam serviços e comodidades, antes luxos apenas reservados aos extremamente ricos, com a facilidade de um clique de um botão. A Re/Code fez uma extensa e muito interessante série de matérias sobre essa onda de gratificação instântanea, também conhecida pelo acrônimo “IWWIWWIWI”, de “I want what I want when I want it” — ou “Eu quero o que eu quero quando eu quero”, e eu recomendo muito a leitura.

Respondendo a essa demanda, e dentro de gig economy, há sites que permitem você encontrar e pagar por serviços profissionais, como designers, webmasters e vários outros, a um custo realmente muito baixo — sempre é claro, com a crítica de profissionais que acreditam que o valor cobrado desvaloriza o trabalho envolvido.

Durante o último ano eu trabalhava de segunda a segunda — não apenas no desenvolvimento do produto, minha área, mas no dia a dia das operações: atendendo clientes, auxiliando profissionais a chegarem a seus locais a partir das 6:00 da manhã, o que por si só é bem estressante, talvez o trabalho com maior stress que eu já tive. Lentamente, eu ia me devorando com os acontecimentos: punições arbitrárias, pessoas doentes ligando para desmarcar, a ira de algumas pessoas sem trabalho, a realização de que algumas tinham a agenda cheia de serviços e outras, seja pela localização geográfica seja por outros motivos, quase nunca eram chamadas. Fora isso, a mídia começou a dar atenção a esse tipo de startup e comecei a ler as descrições do que se passava e que não eram particularidades nossas e nem do Brasil.

Um dos artigos que me fizeram questionar tudo o que estava acontecendo ao meu redor foi publicado pelo Washington Post em setembro de 2014. Lembro de ter compartilhado o mesmo em meu perfil pessoal do Facebook e também de ter sido instruído diretamente a retirá-lo, para evitar potenciais problemas de associação ou mesmo com os investidores. Em “At the Uber for home cleaning, workers pay a price for convenience”, Lydia DePillis descreveu alguns dos problemas que vinhamos enfrentando, mas que você esperava que com o tempo eles sejam resolvidos: profissionais que não recebem uma quantidade mínima de trabalho para ter um rendimento compatível com o salário mínimo, cancelamentos, falta de amparo em momentos de doença, necessidade de faltas e as punições para conseguir novos trabalhos depois disso.

O que mais me chamou atenção foi a explicitação, de algo que eu já sabia, de que as empresas que operam nesse setor não são as empresas que verdadeiramente oferecem os serviços. O AirBnb não é uma empresa de hotelaria. Quem recebe e hospeda os hóspedes são as pessoas que disponibilizam seus quartos, apartamentos oucasas. O AirBnb é uma empresa que possui um catálogo para que essas pessoas se encontrem. O HomeJoy, Handy, Blumpa e Helpling não são empresas de limpeza. Nenhum delas, legamente falando, se responsabilizam pelo serviço que prestam. Na prática, elas tentam compensar eventuais problemas — pois isso funciona como marketing e gera bons relacionamentos com clientes — , e, para elas terem sentido econômico, é essencial a recorrência dentro de suas plataformas. Veja os termos de uso da HomeJoy, grifos meus:

“THE COMPANY DOES NOT PROVIDE CLEANING SERVICES, AND THE COMPANY IS __NOT A CLEANING SERVICE PROVIDER __ […] THE COMPANY OFFERS INFORMATION AND A METHOD TO OBTAIN SUCH THIRD PARTY CLEANING SERVICES, BUT DOES NOT AND DOES NOT INTEND TO PROVIDE CLEANING SERVICES OR ACT IN ANY WAY AS A CLEANING SERVICE PROVIDER, AND HAS NO RESPONSIBILITY OR LIABILITY FOR ANY CLEANING SERVICES PROVIDED TO YOU BY SUCH THIRD PARTIES.”

Ou da Helpling, que anuncia faxinas com descontos nos metrôs de São Paulo, grifos meus:

Os USUÁRIOS deverão manter a HELPLING isenta de qualquer responsabilidade pertinente a prestação do serviço doméstico. A HELPLING não poderá ser responsabilizada por quaisquer atos, danos e omissões de quaisquer USUÁRIOS, sejam por assaltos, perdas, danos materiais, dentre outros incluindo o efetivo cumprimento das obrigações assumidas pelos USUÁRIOS, não sendo estes prejuízos em rol taxativo. O USUÁRIO reconhece e aceita que, ao se cadastrar e aceitar a política do serviço, o faz por sua conta e riscos exclusivos. A HELPLING recomenda que toda transação seja realizada com bom senso.

Ou seja, as startups que oferecem faxina e comodidade não se responsabilizam por nada, nem pela prestação do serviço doméstico. Ela apenas se responsabiliza, de bom grado, pelo pagamento e retenção das taxas que em alguns casos chegam a 45%.

A própria Uber, em seus termos de uso, disponíveis em português, também não aceita qualquer conexão ou responsabilidade pelos serviços, como se nota nos trechos com grifos meus:

A Uber oferece informações e os meios para obter serviços de transporte oferecidos por prestadores de transporte terceirizados, condutores e operadores de veículos (o “Fornecedor de Transporte”), que podem ser solicitados através do uso de um aplicativo fornecido pela Uber e baixado e instalado por você em seu dispositivo móvel pessoal (smartphone) (o “Aplicativo”). […] A qualidade dos serviços de transporte solicitados através do uso do aplicativo ou serviço é inteiramente da responsabilidade do fornecedor de transporte que realmente presta esses serviços de transporte a você. A Uber, sob nenhuma circunstância, aceita responsabilidade em conexão e/ou decorrentes de serviços de transporte prestados pelo fornecedor de transporte ou de quaisquer outros atos, ações, comportamento, conduta e/ou negligência por parte do fornecedor de transporte. Qualquer reclamação sobre os serviços de transporte prestados pelo fornecedor de transporte devem ser apresentadas ao fornecedor de transporte.

A página com os termos de uso é o lugar onde as propostas de valor vão para morrer. Me pergunto o quanto disso não poderia ser considerado propaganda enganosa. Afinal tudo o que eles vendem, sua comunicação e páginas de design atrativo, é exatamente aquilo que eles deixam bem claro que não é de responsabilidade deles. Por exemplo, este anúncio comunica outra coisa:

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Posso estar enganado, mas este anúncio me sugere que eles oferecem faxina e ainda garantem a qualidade e que posso confiar!

E é claro também que isentam-se de qualquer vínculo trabalhista. Algo que nunca consigo abstrair é que as plataformas de economia compartilhada sempre vendem a ideia de que as pessoas contratam serviços “sem intermediários”. Tente contratar um serviço por fora. Essas plataformas — ou vamos realmente dizer o nome deles, intermediários — fazem de tudo para que tudo fique dentro do sistema deles, afinal, é assim que eles capturam valor, i.e., ficam com uma porcentagem de cada transação. Facilitam muito a vida, mas não vamos nos iludir, continuam sendo intermediários.

Destaco este parágrafo dos termos de uso da Helpling, disponível em Termos e condições de uso, grifo meu:

Não obstante, fica proibido que as partes se contratem diretamente após qualquer intermediação da HELPLING. O prazo para contratação direta será de no mínimo 6 (seis) meses após a última intermediação da HELPLING. Caso ocorra contratação direta durante este período, a HELPLING poderá cobrar uma taxa de agenciamento, no valor de R$ 800,00 (oitocentos reais).

Se o profissional de limpeza é um cliente, contratando a empresa e sem qualquer vínculo trabalhista, e que não vai ter compensação em caso de acidente de trabalho ou direito a férias, por que ele fica atrelado ao agenciamento da mesma? Se sou um cliente e contrato uma empresa para fazer algo para mim hoje, e eu paguei a ela, o que me impede amanhã de contratar outra ou realmente fazer a transação “sem intermediários”? Parece que a relação “cliente-empresa” só é interessante quando útil e conveniente. De resto, é a mesma relação de um empregado, é claro, sem nenhum dos encargos.

Um dos discursos que ouço, justificando o modelo é que é melhor ganhar alguma coisa do que coisa nenhuma|. Obviamente há uma verdade nisso — recebíamos agradecimentos de pessoas dizendo que graças aos “bicos” agora tinham dinheiro ou, em uma nota mais emotiva, “graças ao Blumpa posso dar um presente de Natal para o meu filho”. Mas não acredito que podemos nos contentar com isso e criar empresas que por design se aproveitem de pessoas que estão dispostas a isso e façam isso em escala — palavra-chave para as startups — e deixe-as, na realidade, sem qualquer tipo de amparo ou visão a longo prazo de que as coisas melhorem. O melhor cenário possível para esse tipo de empresa é que as pessoas, mais e mais, dependam desse tipo de serviço ao mesmo tempo em que mais pessoas os contratem mais e mais e de forma recorrente. É como criar uma startup que não apenas se beneficia como ajuda a manter a desigualdade.

Isso destruía meu espírito e no que eu acreditava.

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A relação de poder que se estabelece é tão ou mais forte que a servil. Se antes tinham-se como desculpas o poder divino e quaisquer outras racionalizações para a escravidão, hoje as pessoas voluntariamente se colocam em servidão aos algoritmos, ao “sistema”, às “plataformas”, que sendo tecnologias, se passam por objetivos, por “justos”.

A verdade é que as pessoas se unem a estas plataformas pela promessa de aumentar sua renda e acabam ficando para continuar sobrevivendo, tentando se adaptar às exigências e demandas de um sistema que não pensa neles, mas apenas em escalar e aumentar o valor de suas ações no futuro e proporcionar uma boa saída para seus acionistas. “Gig Economy”, “Economia Colaborativa” de serviços… a besta possui muitos nomes e, tendo estado dentro dela, hoje é com tristeza que eu a chamo de escravidão 2.0, ou no inglês, moeda corrente da cultura das startups, slavery 2.0.

Discriminação dos algoritmos

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A grande verdade, que pode ser confirmada por qualquer um que trabalhe com o modelo de negócios de marketplaces, é que encontrar pessoas dispostas a oferecer trabalhos, seja motoristas de carros de luxo, profissionais de limpeza, cuidadores de idosos, ou qualquer outra ocupação, não é o problema. Há sempre uma grande quantidade de pessoas que estão em busca de novas formas de ganhar mais dinheiro.

Você poderia colocar 10.000 pessoas em um mês em sua plataforma anunciando nos lugares certos. O problema não é apenas quantidade, mas qualidade. Afinal, por mais que as startups não se responsabilizem em nenhum momento pelos serviços que prestam, é imperativo para elas que os serviços sejam de boa qualidade: para ter recorrência dos clientes pelos quais ela gastou um certo valor para adquirir e que esses divulguem no famoso boca-a-boca.

Há diversas formas de tentar garantir a qualidade do serviço. A mais óbvia é um processo de seleção. Mas, por questões legais, não pode haver seleção. Lembrem-se, não existe vínculo trabalhista. As pessoas é que são clientes das plataformas e que buscarão empregos para elas. Usam-se vários sinais como empregos anteriores, referências para tentar fazer esse filtro e quando algo aponta para potenciais problemas, o “sistema” simplesmente não envia trabalho. Já que é um cliente e não poderia passar por um processo seletivo. É claro que exatamente o oposto é o dito para os contratantes. Afinal como o anúncio da Helpling ali faz questão de frisar, as pessoas querem contratar profissionais confiáveis.

Uma vez a plataforma enviando trabalhos, todos os serviços, idealmente, recebem feedback dos contratantes. O padrão que observei é que mesmo quando o feedback é excelente, algumas vezes as pessoas não se dão ao trabalho de se manifestar, mas quando é medíocre (no sentido de mediano mesmo, ok?) elas vão avaliar e, se tiver algum problema, vão imediatamente exigir todo o dinheiro de volta, novo serviço, etc., — esta é uma área onde eu poderia me alongar mas não o farei, há pessoas que contratavam horas de limpeza humanamente impossíveis de se terminar suas residências e depois exigiam o dinheiro de volta, e por aí vai.

Voltando aos sistema de feedbacks… Tenho um amigo que está trabalhando no Vale do Silício e usa o Uber diariamente para ir trabalhar. Ele me disse que conversa com os motoristas, todos imigrantes, que lhe falam que é necessário ter 4.6 de 5 estrelas em média para continuar recebendo corridas, acredito eu, em quantidade. Da mesma forma, todas as plataformas usam um ou outro sistema de reputação que impacta no recebimento dos trabalhos. As plataformas sempre partem da premissa de que é um “algoritmo” e que o “sistema” é quem determina quem trabalha. O que é claramente uma deliberada tentativa de mistificação de como a tecnologia funciona ou um profundo desconhecimento de como a tecnologia é construída.

Desenvolvedores não criam caixas pretas que magicamente tomam decisões. Todo algoritmo se baseia em passos e escolhas que refletem os preconceitos, opiniões, necessidades de negócio e limitações de viéses e julgamento de seus criadores. Algoritmos discriminam.

Há um fetiche muito grande com a tecnologia e há uma sensação de conforto para gestores e investidores em dizer que o algoritmo ou sistema está tomando uma determinada decisão. Claro, isso os isenta moralmente das mesmas. Mas é uma mentira. Algumas pessoas possuem uma fé cega e infundada em algoritmos. É uma automatização. E, o que para mim chega a ser um pensamento assustador, uma automatização com variáveis cujos não efeitos não entendemos plenamente —pois além dos “desconhecidos conhecidos”, o mais perigoso de tudo são os “desconhecidos desconhecidos”.

Como McLuhan disse, as tecnologias são extensões do homem. Elas nos amplificam. Elas podem amplificar o nosso melhor. Ou o nosso pior. Dependendo de como essa tecnologia é projetada.

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Cada um pode ter a posição que quiser, em qualquer questão. Mas eu prefiro ficar com o diabo que eu conheço, com o qual eu posso dialogar e responsabilizar.

A húbris de resolver os problemas do mundo

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Acredito que grande parte das dificuldades e problemas seja um sintoma da própria forma como as startups são concebidas. Com uma arrogante presunção de que podem resolver os problemas do mundo, sem completamente entendê-los, ainda depositam uma fé inabalável na tecnologia como agravante. O resultado é que muitas vezes os negócios criados repetem ou amplificam uma série de problemas que os modelos anteriores já possuíam e, que em alguns casos, já haviam sido corrigidos ao longo do tempo. Jovens privilegiados do Vale do Silício, com muito capital disponível, tentam causar “disrupção” em negócios sendo que desconhecem como faze-los. Parte do que Evgeny Morozov em “To Save Everything, Click Here” chama de “Solucionismo”, a húbris do ecossistema de startups. Que existe também aqui no Brasil e, meio que na onda do hype, mimetizamos (com certeza sem a parte do capital e com menos ênfase no privilegiado, mas um sempre é acompanhado do outro — sem privilégios, sem capital também).

Húbris é um conceito grego que desde que conheci me ajuda a explicar muito do que vi no ecossistema de startups brasileiro (aqui cabe o parêntese: eu sempre me incluo nessas descrições. Aponto o dedo para todos e também o aponto para mim). Como explica a Wikipédia:

A húbris ou hybris (em grego ὕϐρις, “hýbris”) é um conceito grego que pode ser traduzido como “tudo que passa da medida; descomedimento” e que atualmente alude a uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, presunção,arrogância ou insolência (originalmente contra os deuses), que com frequência termina sendo punida.

Em resumo:

Húbris é o descaso que alguém tem pelos outros, ou pelos deuses, achando que pode fazer tudo que quiser.

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Como os gregos antropomorfizavam forças da natureza em deuses, peço que façam o oposto: troquem deuses por forças sociais, econômicas e culturais e terão a dimensão do sentido da palavra húbris para nosso contexto prático.

Quando um modelo faz sucesso, as pessoas tentam aplicar para tudo. Um exemplo é o AirBnb. E aí, multiplica-se o número de iniciativas tentando aplicar o modelo de negócio para outros nichos. Basta ir a um evento da Startup Weekend, do qual já fui mentor e participo quando possível, para ver isso em ação. Dentro da proposta da Up Global de disseminar esses eventos para um primeiro contato com o empreendedorismo, acho a iniciativa excelente e louvável. É necessário estimular essas ações pois o empreendedorismo é uma força importante na geração de novos negócios — e de negócios que gerem valor.

Entretanto, como não poderia deixar de ser, existem momentos em que encontramos extremos, como a fala abaixo de uma vencedora de um evento Startup Weekend que procurou a Germinadora em busca de investidores:

“Meu produto só está limitado à taxa de natalidade da humanidade. Pode ser usado pelos 7 bilhões de pessoas no mundo, tendo acesso à internet”.

Soa caricato e, para mim, chega até a ser engraçado, mas acreditem, ela falava sério. E isso é muito do sentimento de “sim, nós podemos”, que o oba-oba da mídia e dos eventos vende para as pessoas. É muito bonito estar dentro do ecossistema e estar imerso nesse sentimento de “sim, nós podemos”. É algo muito forte e que une as pessoas — acho que é esse sentimento que dá gás para a galera que na maioria é voluntária em fazer toda a movimentação do ecossistema. Infelizmente, grande parte de nós, e estou incluso nisso, pula direto para o “sim, nós podemos”, sem passar pelo “sim, nós devemos”. E é aí que reside a húbris que permeia a maioria das iniciativas de startups.

Nós devemos criar um app para tudo? A tecnologia resolve todos os problemas? Como criar sistemas mais justos para todos e que não apenas explorem e aumentem as desigualdades entre as pessoas? Qual o impacto de fato das belas propostas de valor das startups?

O que eu não tenho são respostas e nem soluções. Fico agora como um observador crítico de todo esse movimento. Esperando uma nova startup, talvez chamada Ludovico, que ofereça a comodidade de tratar seus impulsos violentos ou ainda outros e ajude a completar a realidade da santíssima trindade das distopias para nosso mundo.

P.S: Algumas pessoas me questionaram da última vez sobre falta “imparcialidade”, “uso correto de fontes” e “análise”. Eu não sou jornalista. O Medium existe para qualquer pessoa publicar seus artigos — jornalisticos, opinativos, especulativos, ficcionais. Os meus, claramente, são opinativos.

Obviamente eu sai da startup por um todo — motivação, problemas pessoais com o fundador (digamos que nossa relação não era horizontal, e que “co-fundador” era mais um cargo honorífico que vinha com todas as responsabilidades e nenhum benefício extra), mas o que pesou no final foi propósito e o impacto que eu estava causando no mundo.

Devo ressaltar que hoje, pessoalmente, eu detenho 0% das ações da startup e que ao sair, recebi exatos R$ 0,00. Não tenho as respostas certas de como agir em nossa sociedade e estar feliz com isso — pelo contrário, estou cheio de dúvidas. Saí quando eu não tinha mais ânimo para me levantar às 6:00 da manhã e ir trabalhar. Era o momento de partir para outra, com a esperança de finalmente encontrar o meu lugar.