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AI é de esquerda e Cripto é de direita?

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Assim pensam dois titãs da tecnologia, Marc Andreessen e Peter Thiel. Eu tenho vários bilhões a menos e uma opinião diferente e adiciono meus dois centavos à questão (não poderia com o câmbio oferecer mais no momento). Entenda meus questionamentos.

Marc entrou para a história da web ao ser um dos autores do primeiro navegador com imagens, o Mosaic e depois por ter fundado a Netscape, o browser que levou a competição (i.e. Microsoft) a investir pesadamente na web e fundamentou a criação da Mozilla e o Firefox. Hoje é um VC (Venture Capitalist, “capitalistas de risco”) e um de seus artigos entrou para o imaginário com a frase “Software está devorando o mundo”, e seu parceiro de negócios VC escreveu um excelente livro The Hard Thing About Hard Things. Thiel também hoje é um VC. Ajudou a fundar o Paypal e a Palantir e foi um dos primeiros investidores no Facebook. Escreveu um livro chamado de “Zero to One” e mais recentemente, auxiliou e apoiou o governo de Trump.

Em uma recente entrevista, ênfases minhas:

Finally, Peter Thiel has made the characteristically sweeping observation that AI is in some sense a left wing idea -- centralized machines making top-down decisions -- but crypto is a right wing idea -- many distributed agents, humans and bots, making bottom-up decisions. I think there’s something to that. Historically the tech industry has been dominated by left wing politics, just like any creative field, which is why you see today’s big tech companies so intertwined with the Democratic Party. Crypto potentially represents the creation of a whole new category of technology, quite literally right wing tech that is far more aggressively decentralized and far more comfortable with entrepreneurialism and free voluntary exchange. If you believe, as I do, that the world needs far more technology, this is a very powerful idea, a step function increase in what the technology world can do.

Sweeping observation pode ser entendida como uma perspicaz, arrasadora observação. Essa dicotomia entre direita e esquerda é cartunesca e simplista demais. E estamos falando de ambos bilionários. Em ambas formas de governo ou orientação política surgem esses tipos de abordagem - top-down e bottom-up. Mas é ironico ver esse tipo de discurso de uma pessoa cuja existência no mundo é literalmente agir de forma top-down - basicamente decidindo o que vai ou não receber dinheiro e ter uma chance no mercado.

O sentido original era apenas a posição em que as pessoas sentavam. Os da direita sendo os que suportavam a Igreja e Monarquia centralizada e a esquerda, seus opositores. Os termos, é claro, foram ganhando multi significados e continuam, cada vez mais em uma progressão gemométrica, ao ponto de algumas vezes cairmos em paródias de paródias de paródias.

Fora isso, uma das empresas de Thiel equipa governos com ferramentas de Machine Learning que parecem exatamente os clichês mais caricaturos de qualquer distópia de Estados de Vigilância.

Update: Curiosamente Jackson Palmer, co-fundador do Dogecoin, chamou criptomoedas sendo “inerentemente de direita”:

Neutralidade da tecnologia

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Nenhuma tecnologia é neutra. Objetos possuem políticas. Mas não de uma forma tão simplista e menos ainda eu diria, partidárias como proposta por ambos. Um excelente livro para mergulhar no assunto é How Artifacts Afford da Jenny L. Davis:

Human-technology relations are a subtle dance in which technological objects push and pull with varying degrees of insistence while human subjects navigate with more and less motivation, creativity, and skill.

Technologies are designed, implemented, and used through webs of choices. Some of these choices are explicit and reflect a clear intention for the technology to affect human action in some specific way. Other choices are implicit and may not ever enter the conscious minds of designers, distributors, or end users. Each choice—explicit or implicit—reflects and affects value orientations, sociostructural arrangements, and social dynamics.

E agora, um experimento de pensamento

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Se você estivesse agora sendo ejetado de uma nave espacial já fora do Sistema Solar. Você está flutuando a esmo no espaço. Você na imensidão vazia do espaço, aguardando seu suporte de vida chegar ao fim encontra flutuando uma metralhadora AK-47. Excluindo a possibilidade de você estar aluciando devido a deprivação de falta de oxigênio ou do stress emocional de estar flutuando no espaço. O que você pensaria daquele objeto? Que dada as leis matemáticas do Universo, os átomos poderiam se arranjar exatamente no formato de uma AK-47 em qualquer ponto aleatório do espaço? Pode ser uma teoria. Minha teoria entretanto é que somente poderia significar que assim como você, aquile objeto está ali pelo mesmo destino que o seu: foi abandonado por alguma causa humana.

A Ak-47 é um objeto da sociedade humana, criado com um propósito bem específico, tanto em termos militares, financeiros e estratégicos. Esse objeto não existe sem todo o complexo contexto armamentista que o gerou. “Armas não matam pessoas, pessoas é que matam pessoas”. Certamente, mas é bem difícil tomar sorvete de creme com uma AK-47 ou usar como muleta, mas como vemos em imagens sofridas, é o que ocorreu com alguns soldados no passado quando em meio a conflitos tiveram suas pernas decepadas. Um objeto não é determinante e imperativo em seu uso, mas ele certamente foi criado para um uso, ele é literalmente, ação humana encarnada. “Armas não matam pessoas, pessoas usando objetos criados especificamente para aumentar sua letalidade em eliminar outras pessoas e que existem apenas e tão somente em meio a essa cultura que se retroalimenta e direciona ações de assassinato de reproducilidade técnica”, poderia ser uma melhor descrição.

Technological objects can exert substantial force, but only humans can and must be held to account. I hinge the assumption of object-subject asymmetry on a distinction between efficacy and agency. Efficacy refers to the capacity to effect change. Agency refers to the capacity to inflict will. This distinction comes from Ernst Schraube’s technology as materialized action approach, which claims that although technology can be highly efficacious, only humans can be agentic.

No final, apenas e tão somente humanos podem e devem ser responsabilidados. Mas os objetos existem nessa rede em que as pessoas, consciente ou voluntariamente ou não, tomam parte. Tecnologias não sáo neutras pois são atos encarnados, atos humanos, demasiadamente humanos.

Finalmente, por quê se importar afinal com a opinião dessas duas figuras? Em uma palavra: política. Pegando carona na definição de política da Wikipédia (onde mais?), ”[…]política “consiste nos meios adequados à obtenção de qualquer vantagem”, segundo Hobbes ou “o conjunto dos meios que permitem alcançar os efeitos desejados”, para Russel ou “a arte de conquistar, manter e exercer o poder, o governo”, que é a noção dada por Nicolau Maquiavel, em O Príncipe”.

Vejamos em ação. O recém lançado GitHub Copilot, por exemplo, que traz uma gigantesca definição de “Your AI pair programmer” para não deixar dúvidas:

AWS lidera o mercado de Cloud
Your left-wing pair programmer como Thiel e Andreessen definiriam

Estritamente falando Machine Learning (ML) ou apredizado de máquina em português e é uma das partes / ramos mais bem sucedidos tanto em aplicações como efeitos na sociedade de Inteligência Artificial. Mas não representa todo o campo e certamente não se traduz no que culturalmente tomamos por Inteligência Artificial, que é muito mais fruto de nossos sonhos do que qualquer outra coisa. Estamos muito longe de ter Inteligêcia Geral Artificial, i.e. uma inteligência comparável à humana e isso não é minha humilde opinião apenas, mas defendida por cientistas e revisada por pares como este artigo Why general artificial intelligence will not be realized publicado o último ano na Nature. Ou neste artigo bem amplo e pesquisado Artificial general intelligence: Are we close, and does it even make sense to try? por Will Douglas Heaven para o MIT Technology Review. Respostta curta: Estamos muito longe e talvez nem mesmo seja atingível. Não é nem mesmo possível calcular. Mas talvez só a busca nos abra possibilidades de pesquisa. Joseph Weizenbaum, o criador de ELIZA, anos mais tarde também compartiulhou que em um livro chamado “Computer Power and Human Reason” que talvez seja uma busca em vã e que talvez em uma das frases mais interessantes do livro, na minha opinião é claro, “Computers and men are not species of the same genus”. Vale a leitura!

Mas tratando como se fossem exatamente a mesma coisa levamos a assumir intenções ou atos, e isso vai influenciar como pensamos e agimos no futuro. O Copilot não é inteligente em nenhum sentido da palavra, assim como por propósitos de chacota várias e várias pessoas publicaram resultados peculiares, estranhos ou simplesmente errados. Mas se chamar “inteligente” é bom para a empresa - deve aumentar o valor para os shareholders da Microsoft mas influencia pessoas desenvolvedoras a pensarem no futuro de seu trabalho, na sua relação com criar código e isso acontece muitas vezes sem muito viés crítico pois simplesmente é aceito tal como é. E o que em absoluto não é: artificial. O código, a rede por trás do Copilot não está interpretando um problema, pensando nas melhores práticas e implementando uma solução. Está expropriando o trabalho humano de dezenas, centenas de pessoas desenvolvedoras que colocaram seu código com licenciamentos abertos para uso da comunidade e faz o possível para encontrar dentre aquele código o que ajude a tarefa no momento. Em um exemplo, literalmente codou o código de uma página sobre ipsis literis de um desenvolvedor com email, twitter, etc.

O GitHub Copilot só é possível pois uma legião de pessoas, no open source, deixaram seus códigos abertos, sem “propriedade” – o que diverge muito de uma sociedade capitalista baseada na propriedade.

Mesmo a licença mais permissiva de todas, a MIT, que eu pessoalmente uso para todo projeto diz:

The above copyright notice and this permission notice shall be included in all copies or substantial portions of the Software.

Nenhum dos snippets gerados traz qualquer aviso de copyright. Outras licenças exigem que o código criado seja aberto, ou seja, teríamos que ter acesso ao próprio código do Copilot. Esta ferramenta traz a tona essa grande questão de expropriação do trabalho humano para fins de uma grande empresa pública, a Microsoft que após anos sendo odiada por desenvolvedores do mundo todo passou nos últimos anos a ganhar muito crédito com iniciativas como a Azure, o VS Code, TypeScript e mais recentemente a compra do GitHub e com este, a NPM. Julia Reda do Partido Pirata Europeu tem uma abordagem diferente mas acredito que sua defesa para garantir o copyleft e ML que ela delinia dois argumentos, um deles, em minha visão se sustenta entretanto o outtro não, acaba nem mesmo sendo um argumento e apenas uma redução ao absurdo. Mas é sempre importante ter perspectivas diferentes.

Mas voltndo `a discussão inicida pela provocação inicial , podemos dizer que o Copilot é “de esquerda”? Não acredito, pois parece fazer uma apropriação indevida do bem comum que iria contra vários dos princípios encontrados nesse espectro, assim como não acredito que poderíamos chamá-lo “de direita”.

AI é de esquerda e Cripto é de direita? Nem um, nem outro. Para mim: Thiel e Andreessen tem uma visão limitada e partidária do que significa política, talvez ser um bilionário provoca uma ruptura do tecido social que eles não conseguem entender já que seus desejos, seu poder, pode ser sempre exercido, e questões que não controlam apenas enxergam personificados e não de forma estrutural. Lembrando, que o que significa ser bilionário com a metáfora temporal: um milhão de segundos equivale a menos de 12 dias; 1 bilhão de segundos é quase 32 anos. AI e Cripto não são nem de direita e nem de esquerda per se mas são ferramentas e tecnologias com grande poder de mudança e certamente serão cooptados por qualquer agente em busca de exercer poder.